27/04/2011

A OBRA DE ARTE

NA ERA DA SUA REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA (*) Benjamin (1955)

Walter Benjamin

As nossas belas-artes foram instituídas e os seus tipos e usos fixados numa época que se

diferencia decisivamente da nossa, por homens cujo poder de acção sobre as coisas era

insignificante quando comparado com o nosso. Mas o extraordinário crescimento dos nossos

meios, a capacidade de adaptação e exactidão que atingiram, as ideias e os hábitos que

introduzem anunciam-nos mudanças próximas e muito profundas na antiga indústria do

Belo. Em todas as artes existe uma parte física que não pode continuar a ser olhada nem

tratada como outrora, que já não pode subtrair-se ao conhecimento e potência modernos.

Nem a matéria, nem o espaço, nem o tempo são desde há vinte anos o que foram até então. E

de esperar que tão grandes inovações modifiquem toda a técnica das artes, agindo, desse

modo, sobre a própria invenção, chegando talvez mesmo a modificar a própria noção de arte

em termos mágicos.

Quando Marx empreendeu a análise do modo de produção capitalista, este modo de produção

estava ainda nos seus primórdios. Marx. Orientou a sua análise de tal forma que ela adquiriu

um valor de prognóstico. Recuou até às relações fundamentais da produção capitalista e

apresentou-as de forma tal que elas explicitaram aquilo que, de futuro, se poderia esperar do

capitalismo. Ficou explícito que dele seria de esperar, não %ó uma exploração crescentemente

agravada do proletariado, como também, por fim, a criação de condições que tomariam

possível a sua própria abolição.

A transformação da superstrutura, que decorre muito mais lentamente do que a da infraestrutura,

necessitou de mais de meio século para tomar válida a alteração das condições de

produção, em todos os domínios da cultura. Só hoje se pode indicar sob que forma isso

sucedeu. A essas indicações colocam-se certas exigências de prognóstico. Mas estas

exigências correspondem menos a teses sobre a arte do proletariado depois da tomada de

poder, para não falar da sociedade sem classes, do que a teses sobre as tendências de evolução

da arte, sob as condições de produção actuais. A sua dialéctica nota-se tanto na superstrutura

como na economia. Por essa razão seria errado subestimar o valor de luta de tais teses.

Eliminam alguns conceitos tradicionais – como a criatividade, a genialidade, o valor eterno e

o secreto – conceitos cuja aplicação descontrolada (e actualmente dificilmente controlável)

conduz ao tratamento de material factual num sentido fascista. Os conceitos seguidamente

introduzidos, novos em teoria da arte, diferenciam-se dos correntes pelo facto de serem

totalmente inadequados dos para fins fascistas. Pelo contrário, são aproveitáveis para

formulação de exigências revolucionárias em politica de arte.

I

Por princípio a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens tinham feito sempre

pôde ser imitado por homens. Tal imitação foi também exercitada por alunos para praticarem

a arte, por mestres para divulgação das obras e, finalmente, por terceiros ávidos de lucro. Em

contraposição a isto, a reprodução técnica da obra de arte é algo de novo que se vai impondo,

intermitentemente na história, em fases muito distanciadas umas das outras, mas com

crescente intensidade. Os Gregos conheciam apenas dois processos de reprodução técnica de

obras de arte: a fundição e a cunhagem. Bronzes, terracotas e moedas eram as únicas obras de

arte que podiam produzir em massa. Todas as outras eram únicas e não podiam ser

reproduzidas tecnicamente. As artes gráficas foram reproduzidas pela primeira vez com a

xilogravura e passou longo tempo até que, pela impressão, também a escrita fosse

reproduzida. São conhecidas as enormes alterações que a impressão, a reprodutibilidade

técnica da escrita, provocou na literatura. Mas à escala mundial, tais modificações são apenas

um caso particular, ainda que extraordinariamente importante do fenómeno que aqui se

observa. À xilografia juntam-se, no decorrer da Idade Média, a gravura em cobre e a águaforte,

bem como a litografia no início do século XIX.

Com a litografia, a técnica de reprodução regista um avanço decisivo. O processo muito mais

conciso, que diferencia a transposição de um desenho para uma pedra do seu entalhe num

bloco de madeira, ou da sua gravação numa placa de cobre, conferiu, pela primeira vez, às

artes gráficas a possibilidade de colocar no mercado os seus produtos, não apenas os

produzidos em massa (como anteriormente) mas ainda sob formas todos os dias diferentes. A

litografia permitiu às artes gráficas irem ilustrando o quotidiano. Começaram a acompanhar a

impressão. Mas poucas décadas após a invenção da litografia, as artes gráficas foram

ultrapassadas pela fotografia. Pela primeira vez, com a fotografia, a mão liberta-se das mais

importantes obrigações artísticas no processo de reprodução de imagens, as quais, a partir de

então, passam a caber unicamente ao olho que espreita por uma objectiva. Uma vez que olho

apreende mais depressa do que a mão desenha, o processo de reprodução de imagens foi tão

extraordinariamente acelerado que pode colocar-se a par da fala. O operador de cinema ao dar

à manivela, no estúdio, pode acompanhar a velocidade com que o actor fala. Se o jornal

ilustrado estava virtualmente oculto na litografia, também na fotografia o está filme sonoro. A

reprodução técnica do som foi iniciada no fim do século passado. Os esforços convergentes

fizeram antever uma situação que Paul Valéry caracterizou, com a seguinte frase: "Tal como a

água, o gás e a energia eléctrica, vindos longe através de um gesto quase imperceptível,

chegam a no sãs casas para nos servir, assim também teremos ao nosso dispor imagens ou

sucessões de sons que surgem por um pequeno gesto, quase um sinal, para depois, do mesmo

modo nos abandonarem"1. No início do século XX, a reprodução técnica tinha atingido um

nível tal que começara a tornar objecto seu, não só a totalidade das obras de arte

provenientes de épocas anteriores, e a submeter os seus efeitos às modificações mais

profundas, como também a conquistar o seu próprio lugar entre os procedimentos

artísticos. Para o estudo deste nível, nada é mais elucidativo do que as suas duas diferentes

manifestações – a reprodução da obra de arte e o cinema – e a sua repercussão retrospectiva

sobre a arte, na sua forma tradicional.

II

Mesmo na reprodução mais perfeita falta uma coisa: o aqui e agora da obra de arte – a sua

existência única no lugar em que se encontra. É, todavia, nessa existência única, e apenas ai,

que se cumpre a história à qual, no decurso da sua existência, ela esteve submetida. Nisso,

contam tanto as modificações que sofreu ao longo do tempo na sua estrutura física, como as

diferentes relações de propriedade de que tenha sido objecto2. Os vestígios da primeira só

podem ser detectados através de análises de tipo químico ou físico, que não são realizáveis na

reprodução; os da segunda são objecto de uma tradição que deve ser prosseguida a partir do

local onde se encontra o original.

O aqui e agora do original constitui o conceito da sua autenticidade. Para averiguar a

autenticidade de um bronze, pode ser útil proceder a uma análise de tipo químico, na sua

patina, da mesma forma que, para verificar a autenticidade de determinado manuscrito

medieval, pode ser útil a prova de que ele provém de um arquivo do século XV. O domínio

global da autenticidade subtrai-se à reprodutibilidade técnica – e, naturalmente, não só a esta3.

Mas enquanto o autêntico mantém a sua autoridade total relativamente à sua reprodução

manual, que, regra geral, é considerada uma falsificação, isto não sucede relativamente à

reprodução técnica. Para tanto há um motivo duplo: em primeiro lugar, relativamente ao

original, reprodução técnica surge como mais autónoma do que a manual. Na fotografia pode,

por exemplo, salientar aspectos do original, que só são acessíveis a uma lente regulável e que

pode mudar de posição para escolher o seu ângulo de visão, mas não são acessíveis ao olho

humano ou, por meio de determinados procedimentos como a ampliação ou o retardador,

registar imagens que pura e simplesmente não cabem na óptica natural. Este o primeiro

aspecto. Além disso, em segundo lugar, pode colocar o original em situações que nem o

próprio original consegue atingir. Sobretudo, ela toma-lhe possível o encontro com quem a

apreende, seja sob a forma de fotografia, seja sob forma de disco. A catedral abandona o seu

lugar para ir ao encontro do seu registo num estúdio de um apreciador de arte, a obra coral,

que foi executada ao ar livre ou numa sala, pode ser ouvida num quarto.

As situações a que se pode levar o resultado da reprodução técnica da obra de arte, e que,

aliás, podem deixar a existência da obra de arte incólume, desvalorizam-lhe, de qualquer

modo o seu aqui e agora. Ainda que, de forma nenhuma, isto seja apenas válido para a obra de

arte e corresponda, por exemplo à paisagem que, num filme, se desenrola perante o espectador

atinge-se, através deste processo, um núcleo tão sensível do objecto de arte que uma

vulnerabilidade tal não existe num objecto natural. É esta a sua autenticidade. A autenticidade

de uma coisa é a suma de tudo o que desde a origem nela é transmissível, desde a sua duração

material ao seu testemunho histórico. Uma vez que este testemunho assenta naquela duração,

na reprodução ele acaba por vacilar, quando a primeira, a autenticidade, escapa ao homem e o

mesmo sucede ao segundo; ao testemunho histórico da coisa. Apenas este, é certo; mas o que

assim vacila, é exactamente a autoridade da coisa.

Pode resumir-se essa falta no conceito de aura e dizer: o que murcha na era da

reprodutibilidade da obra de arte é a sua aura. O processo é sintomático, o seu significado

ultrapassa o domínio da arte. Poderia caracterizar-se a técnica de reprodução dizendo que

liberta o objecto reproduzido do domínio da tradição. Ao multiplicar o reproduzido, coloca

no lugar de ocorrência única a ocorrência em massa. Na medida em que permite à

reprodução ir ao encontro de quem apreende, actualiza o reproduzido em cada uma das

suas situações. Ambos os processos provocam um profundo abalo do reproduzido, um abalo

da tradição que é o reverso da crise actual e a renovação da humanidade. Estão na mais

estreita relação com os movimentos de massas dos nossos dias. O seu agente mais poderoso é

o filme. O seu significado social também é imaginável, na sua forma mais positiva, e

justamente nela, mas não sem o seu aspecto destrutivo e catártico: a liquidação do valor da

tradição na herança cultural. Este fenómeno é mais evidente nos grandes filmes históricos.

Cada vez engloba mais posições no seu domínio. E quando, em 1927, Abel Gance exclamou

entusiasticamente "Shakespeare, Rembrandt, Beethoven, farão filmes... Todas lendas, as

mitologias e os mitos, todos os fundadores de religiões, sim, todas as religiões... esperam a

sua ressurreição pela luz do filme e os heróis acotovelam-se às portas", estava,

provavelmente sem querer, a dirigir um convite a uma liquidação total.

III

Em grandes épocas históricas altera-se, com a forma existência colectiva da humanidade, o

modo da sua percepção sensorial. O modo em que a percepção sensorial do homem organiza –

o medium em que ocorre – é condicionado não só naturalmente, como também

historicamente. A época das grandes invasões, em que surgiram a indústria de arte do Baixo

Império e a Génese de Viena, tinha não só uma arte diferente da da antiguidade como também

uma outra percepção. Os eruditos da escola de Viena, Riegel e Wickhoff, que se opuseram ao

peso da tradição clássica, sob a qual aquela arte tinha estado enterrada, foram os primeiros a

pensar em tirar conclusões relativamente à organização da percepção na época em que ela

vigorava. Por mais amplo que fosse o seu conhecimento, tinham limites que consistiam no

facto destes investigadores se contentarem com a característica formal, específica, da

percepção na época do Baixo Império. Não tentaram mostrar – e talvez não pudessem esperar

consegui-lo – as transformações que foram expressas nestas transformações da percepção.

Actualmente, as condições para tal entendimento são favoráveis. E, se pudermos entender,

como decadência da aura, as alterações no medium da percepção de que somos

contemporâneos, também é possível mostrar as condições sociais dessa decadência.

É aconselhável ilustrar o conceito de aura, acima proposto para objectos históricos, com o

conceito de aura para objectos naturais. Definimos esta última como manifestação única de

uma lonjura, por muito próxima que esteja. Numa tarde de Verão descansando, seguir uma

cordilheira no horizonte, ou um ramo que lança a sombra sobre aquele que descansa – é isso a

aura destes montes, a respiração deste ramo. Com base nesta descrição, é fácil admitir o

condicionalismo social da actual decadência da aura. Essa decadência assenta em duas

circunstâncias que estão ligadas ao significado crescente das massas, na vida actual. Ou seja:

"Aproximar" as coisas espacial e humanamente é actualmente um desejo das massas tão

apaixonado6 como a sua tendência para a superação do carácter único de qualquer

realidade, através do registo da sua reprodução. Cada dia se toma mais imperiosa a

necessidade de dominar o objecto fazendo-o mais próximo na imagem, ou melhor, na cópia,

na reprodução. E a reprodução, tal como nos é fornecida por jornais ilustrados e semanários,

diferencia-se inconfundivelmente do quadro. Neste, o carácter único e a durabilidade estão tão

intimamente ligados, como naqueles a fugacidade e a repetitividade. Retirar o invólucro a um

objecto, destroçar a sua aura, são características de uma percepção, cujo "sentido para o

semelhante no mundo" se desenvolveu de forma tal que, através da reprodução, também o

capta no fenómeno único. Assim, manifesta-se no domínio do concreto o que no domínio da

teoria se toma evidente, com o crescente significado da estatística. A orientação da realidade

para as massas e, destas para aquela, é um processo de amplitude ilimitada, tanto para o

pensamento como para a intuição.

IV

A singularidade da obra de arte é idêntica à sua forma de se instalar no contexto da tradição.

Esta tradição, ela própria é algo de completamente vivo, algo de extraordinariamente mutável.

Uma estátua antiga da Vénus, por exemplo, situava-se - num contexto tradicional diferente,

para os Gregos que a consideravam um objecto de culto, e para os clérigos medievais que

viam nela um ídolo nefasto. Mas o que ambos enfrentavam da mesma forma, era a sua

singularidade, por outras palavras a sua aura. O culto foi a expressão original da integração da

obra de arte no seu contexto tradicional. Como sabemos, obras de arte mais antigas surgiram

ao serviço de um ritual, primeiro mágico e depois religioso. É, pois, de importância decisiva

que a forma de existência desta aura, na obra de arte nunca se desligue completamente da sua

função ritual.7 Por outras palavras: o valor singular da obra de arte "autêntica" tem o seu

fundamento no ritual em que adquiriu o seu valor de uso original e primeiro. Este,

independentemente de como seja transmitido, mantém-se reconhecível, mesmo nas formas

profanas do culto da beleza, enquanto ritual secularizado8.

O culto profano da beleza, que surgiu na Renascença para se manter em vigor durante três

séculos, permite reconhecer com nitidez aqueles fundamentos, ao expirar quando sofre os seus

primeiros abalos significativos. Quando, com o aparecimento da fotografia, o primeiro meio

de reprodução verdadeiramente revolucionário (que coincide com o alvorecer do socialismo),

a arte sente a proximidade da crise que, cem anos mais tarde, se tinha tomado inequívoca,

reagiu com a doutrina da "l'art pour l’art", que é uma teologia da arte. Dela surgiu

precisamente uma teologia negativa na forma de uma arte "pura" que recusa, não só qualquer

função social da arte, como também toda a finalidade através de uma determinação concreta.

(Na poesia, Mallarmé, foi o primeiro a alcançar esta posição.)

É indispensável a consideração de tais contextos, para a reflexão sobre a obra de arte na era da

sua reprodutibilidade técnica. Porque eles preparam o reconhecimento que aqui é decisivo: a

reprodutibilidade técnica da obra de arte emancipa-a, pela primeira vez na história do mundo,

da sua existência parasitária no ritual. A obra de arte reproduzida, toma-se cada vez mais a

reprodução de uma obra de arte que assenta na reprodutibilidade9. A partir da chapa

fotográfica, por exemplo, é possível fazer uma grande quantidade de cópias, o que retira

V

A recepção da arte verifica-se com diversas tónicas, quais se destacam duas, polares. Uma

assenta no valor culto, a outra no valor de exposição da obra de arte10;11. A produção artística

começa por composições ao serviço do culto. E lícito supor-se que estas composições sejam

mais importantes pela sua existência do que pelo facto de serem vistas. O alce representado

pelo homem da idade da pedra, nas paredes das suas cavernas, é um instrumento mágico. É

certo que ele o expõe perante os outros homens, mas é principalmente dedicado aos espíritos.

Hoje o valor de culto parece requerer que a obra de arte permaneça oculta: certas estátuas de

deuses só são acessíveis ao sacerdote na sua cela, certas virgens permanecem cobertas durante

quase todo o ano, determinadas esculturas em catedrais medievais não são visíveis observador

que está no plano térreo. Com a emancipação de cada uma das práticas da arte, do âmbito

ritual, aumentam oportunidades de exposição dos seus produtos. A possibilidade de expor

um busto que pode ser enviado para qualquer lado, é maior do que a de expor uma divindade

que tem o seu lugar no interior de um templo. A possibilidade de expor uma pintura é maior

do que a de expor o mosaico ou o fresco que a precederam. E ainda que a possibilidade de

expor, em público, uma missa não seja inferior à de o fazer relativamente a uma sinfonia, esta

surgiu numa época em que a sua possibilidade de ser exposta prometia ser superior à da

missa.

Com os diversos métodos de reprodução técnica da obra de arte, a sua possibilidade de

exposição aumentou de forma tão poderosa que o desvio quantitativo entre ambos os seus

pólos, tal como originalmente existiam, se traduz numa alteração qualitativa da sua natureza.

Nos primórdios, a obra de arte, devido ao peso absoluto que assentava sobre o seu valor culto,

transformou-se, principalmente, num instrumento de magia que só mais tarde foi, em certa

medida, reconhecido como obra de arte. Da mesma forma, actualmente, a obra de arte devido

ao peso absoluto que assenta sobre o seu valor de exposição, passou a ser uma composição

com funções totalmente novas, das quais se destaca a que nos é familiar, a artística, e que,

posteriormente, talvez venha a ser reconhecida como acidental12. É certo que actualmente a

fotografia e, mais ainda, o filme, nos proporcionam um útil acesso a este tipo de questões.

VI

Na fotografia, o valor de exposição começa a afastar, em todos os aspectos, o valor de culto.

Porém, este não cede sem resistência. Ocupa uma última trincheira: o rosto humano. Não é, de

modo nenhum, por acaso que o retrato ocupa um lugar central nos primórdios da fotografia.

No culto da recordação dos entes queridos, ausentes ou mortos, o valor de culto da imagem

tem o seu último refúgio. Na expressão efémera de um rosto humano acena, pela última vez, a

aura das primeiras fotografias. É isto que faz a sua melancolia e beleza inigualáveis. Mas

quando o homem se retira da fotografia, o valor de exposição sobrepõe-se, pela primeira vez,

ao valor de culto. Ter fixado localmente esta evolução é o significado sem paralelo de Atget

que fixou as ruas de Paris vazias, por volta de 1900. Com muita razão, disse-se dele que as

fotografava como um local de crime. Também o local do crime é vazio, sem pessoas. O seu

registo fotográfico destina-se a captar os indícios. Os registos fotográficos, com Atget,

começam a tornar-se provas no processo histórico. É nisso que reside o seu significa político

oculto. Em certo sentido, já exigem uma recepção. A contemplação nefelibata já não lhes é

adequada. Desassossegam o observador; com tais registos o observador sente que tem que

procurar um determinado caminho até eles. Os jornais ilustrados começam, ao mesmo tempo,

a fornecer-lhe indicadores. Certos ou errados, tanto faz. Neles, a legenda torna-se - pela

primeira vez, obrigatória. E é claro que têm um carácter completamente diferente do título de

uma pintura. As indicações que o observador recebe das imagens de um jornal ilustrado,

através da legenda, tomar-se-ão, pouco mais tarde, no filme, mais exactas e peremptórias,

filme em que a apreensão de cada uma das imagens parece ser determinada pela sequência de

todas as anteriores.

VII

A controvérsia travada no decurso do século XIX, entre a pintura e a fotografia relativamente

ao valor artístico dos seus produtos, parece hoje dúbia e confusa. Mas isto não invalida o seu

significado, podendo mesmo sublinhá-lo. De facto, essa controvérsia foi expressão de uma

transformação na história mundial, de que nenhum dos intervenientes teve consciência. Na

medida em que a era da reprodutibilidade técnica da arte a desligou dos seus fundamentos de

culto, extinguiu para sempre a aparência da sua autonomia. Mas a alteração da função da arte,

que com isso se verificou, deixou de existir na perspectiva do século. O mesmo sucedeu no

século XX, que assistiu evolução do cinema.

Já se tinha dedicado muita reflexão vã à questão de saber se a fotografia seria uma arte –

sem se ter questionado o facto de, através da invenção da fotografia, se ter alterado o

carácter global da arte – e, logo a seguir, os teóricos do cinema sucumbiram ao mesmo

erro. Mas as dificuldades que a fotografia tinha levantado relativamente à estética tradicional,

eram uma brincadeira de crianças comparadas com as que foram provocadas pelo cinema. Daí

a violência cega que caracteriza a teoria do cinema nos seus primórdios. Assim, Abel Gance,

por exemplo, compara o filme com o hieróglifo: "Eis como, em consequência de um

retrocesso altamente curioso, regressamos ao nível de expressão dos Egípcios... A linguagem

das imagens ainda não atingiu a sua maturidade porque os nossos olhos ainda não evoluíram o

suficiente. Ainda não existe suficiente respeito, culto por aquilo que elas exprimem."13 Ou,

Séverin-Mars escreve: "A que arte estava reservado um sonho, que... fosse, em simultâneo,

poético e real! Considerado de tal ponto de vista, o cinema representaria um meio de

expressão absolutamente incomparável e, na sua atmosfera, só poderiam mover-se pessoas de

pensamento muito nobre, em momentos de total perfeição e mistério do trajecto da sua

vida.”14 Por seu lado, Alexandre Arnoux conclui uma fantasia sobre o cinema mudo com a

seguinte pergunta: "Não deveriam todas as ousadas descrições de que aqui nos servimos

tender para a definição de oração?”15 É muito instrutivo observar como o esforço de atribuir o

filme à "arte" força estes teóricos, sem qualquer pejo, a reconhecer nele elementos de culto. E,

no entanto, na época em que se publicavam tais especulações, já existiam obras como

"L’opinion publique" ou "La ruée vers l´or”?. Isso não impede Abel Gance de estabelecer

paralelos com os hieróglifos, e Séverin-Mars de falar de filmes, corno se poderia falar de

quadros de Fra Angelico. É significativo que, ainda hoje, autores particularmente

reaccionários procurem um significado do filme mesma direcção, senão no sagrado, pelo

menos no sobrenatural. A propósito da versão em filme, de Reinhardt, do Sonho de Uma

Noite de Verão, Werfel comenta que, indubitavelmente, era a cópia estéril do mundo exterior,

com as suas ruas, interiores, estações de caminho de ferro, restaurantes, automóveis e

estâncias balneárias, que tinha impedido, até então, o cinema de atingir o império da arte.

"O filme ainda não apreendeu o seu verdadeiro sentido, suas verdadeiras possibilidades...

estas consistem na sua faculdade única de, com meios naturais e um poder de persuasão

incomparável, expressar a ambiência do conto de fadas, do maravilhoso, o sobrenatural." 16

VIII

Não há duvida de que no teatro o desempenho artístico actor é apresentado ao público pela

sua própria pessoa; pelo contrário, o desempenho artístico do actor de cinema é apresentado

ao público por um equipamento, o que tem dois tipos consequências. Não se espera do

equipamento que transmite ao público a actuação do actor de cinema, que respeite essa acção

na sua totalidade. Sob a direcção do operador de câmara, esse equipamento toma

constantemente posição perante essa mesma actuação. A sequência de cenas que o montador

compõe, a partir do material que lhe é fornecido, é que constitui o filme acabado. Este engloba

um determinado número de momentos de acção, reconhecidos como tal pela câmara, para não

falar de planos especiais, de primeiros planos. Assim, a representação do actor é submetida a

uma série de testes ópticos. Esta é a primeira consequência do facto de a representação do

actor de cinema ser apresentada pelo equipamento. A segunda assenta no facto de que uma

vez que o actor de cinema não representa perante o público, não pode adaptar, durante a

actuação, o seu desempenho à reacção do mesmo, possibilidade reservada apenas ao actor de

teatro. Por essa razão, o público assume a atitude de um apreciador que não é perturbado pelo

actor, uma vez que não tem qualquer contacto pessoal com ele. A identificação do público

com o actor só sucede na medida em que aquele se identifica com o equipamento. Assimila,

pois, a sua atitude: testa17. Isto não é atitude a que se possam expor valores de culto.

IX

Para o cinema é mais importante que o actor se apresente perante a câmara a si próprio do que

perante o público como outrem. Uma das primeiras pessoas a sentir tal mudança do actor,

devido à pressão dos testes, foi Pirandello. As observações que faz no seu romance "Filmase",

continuam válidas a de ele se limitar a realçar o lado negativo da questão, e de se referir

apenas ao cinema mudo. Porque o cinema sonoro pouco alterou esta questão. O importante é

que se representa para um equipamento e, no caso do filme sonoro, para dois. "O actor de

cinema", escreve Pirandello, "sente-se no exílio. Exilado não só do palco, mas também da sua

própria pessoa: com um mal-estar sombrio sente o inexplicável vazio causado pelo facto seu

corpo se tomar numa manifestação ausente, de se desvanecer e de ser privado da sua

realidade, da sua vida, da sua voz e dos sons que emite quando se move, para se transformar

numa imagem muda que estremece na tela por um instante para pois desaparecer no silêncio...

O pequeno equipamento que representará para o público com a sua sombra, e o actor tem que

se contentar com a representação perante a máquina18. Pode caracterizar-se o mesmo facto da

seguinte forma: pela primeira vez -e isso é obra do cinema – o homem vê-se na situação de

actuar com a sua totalidade de pessoa viva, mas sem a sua aura. Porque a aura está ligada ao

aqui e agora. Dela não existe cópia. A aura que se manifesta em tomo de um Macbeth pode

ser separada da que, para um público ao vivo, rodeia o actor que representa aquele

personagem. A especificidade do registo em estúdio cinematográfico reside no facto de

colocar o equipamento no lugar do público. Assim, a aura que envolve actor tem de

desaparecer e, por conseguinte, também a do personagem representado.

Não é de espantar que seja precisamente um dramaturgo como Pirandello que

inadvertidamente, ao caracterizar o cinema, aponta as razões da crise que assola o teatro. Para

a obra de arte que surge integralmente da sua reprodução técnica – como o filme – não há

maior contraste que o palco. Qualquer observação cuidadosa prova este facto. Há muito que

observadores especializados reconheceram que na representação cinematográfica «quase

sempre se obtêm os melhores efeitos, quando se “representa" o mínimo possível... a mais

recente evolução» – admite Arnheim em 1932 –, "considera o actor como um acessório que é

escolhido pelas suas características e... se insere no lugar próprio."19 A esta ideia está

intimamente ligada uma outra. O actor que representa no palco, identifica-se

frequentemente com um papel. Ao actor de cinema esta possibilidade é frequentemente

recusada. A sua actuação não é, de modo nenhum, um trabalho único, mas sim o resultado de

várias intervenções. Para além de considerações fortuitas como a renda do estúdio, a

disponibilidade de contracenantes, cenários, etc. Trata-se de necessidades elementares da

maquinaria que dispersam a representação do actor numa série de episódios que é preciso

depois montar. Trata-se, principalmente, da iluminação cuja instalação requer, para a

apresentação de acontecimento que, na tela, aparece como uma cena única se desenvolve

rapidamente, a realização de uma série de registos que, no estúdio, consoante as

circunstâncias, pode prolongar-se por várias horas; sem mencionar os casos cuja montagem é

mais evidente. Assim, se um actor tem de saltar por uma janela, filmam-no a saltar no estúdio,

com recurso a um andaime, mas a cena seguinte, da fuga, eventualmente será filmada semanas

mais tarde em exteriores. Aliás, é muito fácil conceber casos ainda mais paradoxais. Pode

pedir-se ao actor que, depois de baterem à porta, faça um movimento brusco, assustado.

Talvez esta actuação não tenha correspondido à desejada. O realizador pode recorrer a um

expediente: oportunamente, quando o actor volta ao estúdio, pode, que ele o espere, ser

disparado um tiro. O susto do filmado neste momento, pode ser montado no filme. Nada

mostra mais claramente que a arte abandonou o império da "bela aparência" que, até então, era

considerado o único em que podia prosperar.

X

A estranheza do actor perante o equipamento, como refere Pirandello, é essencialmente do

mesmo tipo da estranheza que se sente perante a própria imagem reflectida no espelho. Mas

agora, a imagem é separável da pessoa, é transportável. E para onde é transportada? Para

diante do público20. O actor de cinema nunca deixa de ter consciência deste facto. O actor

de cinema, quando está perante a câmara, sabe que em última instância está ligado ao

público: ao público dos receptores, que constituem o mercado. Este mercado, no qual o actor

empenha não só a sua força de trabalho, mas também todo o seu ser, no momento em que

efectua um determinado desempenho, é-lhe tão inacessível como qualquer produto feito numa

fábrica. Não terá esta circunstância a sua parte de influência na inibição, na nova ansiedade,

que acomete o actor perante o equipamento? O cinema reage ao aniquilar da aura, com uma

construção artística da "personality" fora do estúdio. O culto da "estrela”, promovido pelo

capital cinematográfico, conserva a magia da personalidade que, há muito, se reduz à magia

pútrida do seu carácter mercantil. Enquanto o capital cinematográfico der o tom, não se

poderá atribuir ao cinema actual, em geral, outro mérito revolucionário para além do de

promover uma crítica revolucionária de concepções tradicionais da arte. Não contestamos que

o filme actual, em casos particulares, possa promover, além disso, uma crítica revolucionária

das relações sociais, mesmo das de propriedade. Mas o ponto central do presente estudo está

tão longe disso, como o está a produção cinematográfica da Europa Ocidental.

É inerente à técnica do filme, tal como à do desporto, que quem quer que assista aos seus

desempenhos profissionais, o faça como especialista incompleto. Basta ter ouvido um grupo

de ardinas, apoiados nas suas bicicletas, a discutir os resultados de uma corrida de ciclismo,

para nos rendermos à evidência deste facto. Não é por acaso que os editores de jornais

organizam corridas para os seus ardinas. Estas despertam interesse entre os participantes,

porque o vencedor tem a oportunidade de ser promovido de ardina a ciclista profissional. Da

mesma forma, as "actualidades da semana" dão a quer um a possibilidade de passar de simples

transeunte a figurante de cinema. Deste modo, em determinadas circunstâncias qualquer um

pode ser parte de uma obra de arte; pense-se nas"Três Canções sobre Lenine" de Wertoff ou

na "Borinage" de Ivens. Qualquer homem, actualmente, pode ter a pretensão de ser filmado.

Esta pretensão pode ser mais bem clarificada olhando para a situação histórica da escrita

contemporânea.

Durante séculos, a situação da escrita foi de tal ordem que a um reduzido número de escritores

correspondia um número de vários milhares de leitores. No início do século passado

verificou-se uma mudança nesta situação. Com a crescente expansão da imprensa, que

proporcionava aos leitores cada vez mais órgãos locais políticos, religiosos, científicos e

profissionais, uma parte cada vez maior dos leitores começou por, de início ocasionalmente,

passar a escrever. Tudo isto começou com a imprensa diária a abrir aos leitores o seu

"correio", e actualmente a situação é tal que quase não deve haver um europeu, inserido no

mundo do trabalho, que não tenha tido possibilidade de publicar uma experiência laboral, uma

reclamação, uma reportagem, ou algo afim. Assim, a diferença entre autor e público está

prestes a perder o seu carácter fundamental. Esta diferença torna-se funcional, podendo variar

de caso para caso. O leitor está sempre pronto a tomar-se um escritor. Com a crescente

especialização do trabalho, todos os indivíduos tiveram de se tornar, voluntária ou

involuntariamente, especialistas numa dada área, ainda que num sentido menor, assim tendo

acesso à condição de autor. Na União Soviética é o próprio trabalho que tem a palavra. E a

sua representação na palavra constitui uma parte do saber necessário ao seu exercício. A

competência literária deixa de ser fundamentada numa formação especializada para passar a

sê-lo numa formação politécnica, tomando-se deste modo em bem comum21. Tudo isto pode

ser transposto para o cinema, no qual se observam alterações numa década que relativamente

à literatura demoraram séculos a impor-se. Porque na praxis do filme – principalmente no

caso do russo – estas alterações já foram parcialmente concretizadas. Uma parte dos actores

que encontramos em filmes russos, não são actores no nosso sentido, mas sim pessoas que

representam um papel principalmente no seu processo de trabalho. Na Europa Ocidental, a

exploração capitalista do filme impede a legítima pretensão do homem actual em ser

considerado, em vir a ser reproduzido. Nestas circunstâncias, a indústria cinematográfica tem

todo o interesse em incitar a participação das massas, através de concepções ilusórias e

especulações ambíguas.

XI

A realização de um filme, especialmente de um filme sonoro, proporciona um espectáculo

como nunca anteriormente, em tempo ou lugar algum, tinha sido imaginável. É um processo

onde não existe nenhum ponto de observação que permita excluir do campo visual o

equipamento de registo, de iluminação, o pessoal de apoio, etc. (A não ser que a pupila do

espectador coincidisse com a lente da câmara). Esta circunstância, mais do que qualquer

outra, faz com qualquer semelhança entre a cena no estúdio e a do palco passe a ser superficial

e insignificante. Em princípio, o teatro conhece o ponto a partir do qual a acção é apreendida

como ilusória, sem dificuldade. Para o cinema não existe um tal ponto. A sua natureza ilusória

é uma natureza em segundo grau: resulta da montagem. Ou seja: no estúdio cinematográfico,

o equipamento penetrou de tal forma na realidade que o seu aspecto puro, livre dos corpos

estranhos do equipamento, é o resultado de um procedimento particular, nomeadamente

do registo de um aparelho fotográfico ajustado expressamente e da sua montagem com

outros registos do mesmo tipo. O aspecto da realidade, isento de aparelhagem, adquiriu aqui o

seu aspecto artificial, e a visão da realidade imediata tornou-se um miosótis no mundo da

técnica.

O carácter do cinema, que assim se opõe ao do teatro, pode ser confrontado, ainda mais

elucidativamente, com o que se verifica na pintura. Aqui, deve colocar-se a questão: como se

comporta o operador de câmara relativamente ao pintor? Para a sua resposta, seja-me

permitida uma construção auxiliar que se apoia no conceito de operador, tal como é conhecido

da cirurgia. O cirurgião representa o pólo de uma ordem cujo outro extremo é ocupado pelo

mago. A atitude do mago que cura o doente colocando-lhe a mão em cima, é diferente da do

cirurgião que realiza uma intervenção no doente. O mago mantém a distância natural que

existe entre si próprio e o paciente; melhor dizendo: ele diminui-a pouco – por força da mão

que coloca no doente – e aumenta-a muito – por força da sua autoridade. O cirurgião procede

ao contrário: diminui muito a distância relativamente ao paciente – na medida em que

intervém no seu interior – e, aumenta-a apenas ligeiramente – através do cuidado com que a

sua mão se move nos órgãos do paciente. Isto é, contrariamente ao mago (que ainda está

presente no médico), o cirurgião prescinde, no momento decisivo, de se defrontar, enquanto

homem, com paciente, intervindo nele de uma forma operante. O mago e o cirurgião

comportam-se como o pintor e o operador de câmara. O pintor, no seu trabalho, observa uma

distância natural relativamente à realidade, o operador de câmara, pelo contrário, intervém

profundamente na textura da realidade22. Há uma enorme diferença entre as imagens que

obtêm. A do pintor é total, enquanto a do operador de câmara consiste em fragmentos

múltiplos, reunidos devido a uma lei nova. Assim, para o homem contemporâneo, a

representação cinematográfica da realidade é a de maior significado porque o aspecto da

realidade isento de equipamento, que a obra de arte lhe dá o direito de exigir, é garantido,

exactamente através de uma intervenção mais intensiva com aquele equipamento.

XII

A reprodutibilidade técnica da obra de arte altera a relação das massas com a arte.

Reaccionárias, diante, por exemplo, de um Picasso, transformam-se nas mais progressistas

frente a um Chaplin. O comportamento progressista é caracterizado pelo facto do prazer do

espectáculo e da vivência nele suscitar uma ligação íntima e imediata com a atitude do

observador especializado. Tal ligação é um indício social importante. Porque quanto mais o

significado social de uma arte diminui, tanto mais se afastam no público as atitudes, críticas e

de fruição – como reconhecidamente se passa com a pintura. O convencional é apreciado

acriticamente e o que é verdadeiramente novo é criticado com aversão. No cinema, coincidem

as atitudes críticas e de fruição do público. Neste caso, a circunstância decisiva é que em

nenhum outro lugar, como no cinema, a reacção maciça do público, constituída pela soma da

reacção de cada de um dos indivíduos, é condicionada à partida pela audiência em massa. À

medida que essas reacções se manifestam, o público controla-as. A comparação com a pintura

continua a ser útil. A pintura sempre foi apresentada para ser vista por uma, ou algumas

pessoas. A observação simultânea de pinturas, por parte de um grande público, como sucede

no século XIX, é um sintoma precoce da crise da pintura que, não só através da fotografia,

mas também de modo relativamente independente dela, foi desencadeada pela pretensão da

obra de arte, a dirigir-se às massas.

A pintura não está, pois, em condições de ser objecto de uma recepção colectiva simultânea,

como sempre sucedeu com a arquitectura, outrora com a epopeia e actualmente com o cinema.

E por pouco que esta circunstância, em si, nos permita tirar conclusões sobre o papel social da

pintura, é certo que isso institui uma séria limitação num momento em que, devido a uma

série de circunstâncias particulares, e de um modo que até certo ponto contradiz a sua

natureza, ela se vê directamente confrontada com as massas. Nas igrejas e mosteiros

medievais e nas cortes da nobreza, até finais do século XVIII, a recepção colectiva da pintura

não se terá verificado simultaneamente, sendo transmitida de uma forma graduada e

hierárquica. Na mudança que entretanto se verificou, está contida a expressão do conflito

particular causado pelo envolvimento da pintura na reprodutibilidade técnica da imagem. Mas,

embora fosse exibida em público, em galerias e salões, não houve meio que permitisse às

massas organizar ou controlar a sua recepção23. Assim, exactamente o mesmo público que

reage com uma atitude progressista a um filme grotesco, tem de reagir de forma reaccionária

perante o surrealismo.

XIII

O que caracteriza o filme é não só a forma como o homem se apresenta perante o

equipamento de registo, mas também a forma como, com a ajuda daquele, reproduz o seu

meio ambiente. Um olhar sobre a psicologia do desempenho ilustra a capacidade de teste do

equipamento. A psicanálise ilustra esse facto de outro modo.

De facto, o cinema enriqueceu o nosso horizonte de percepção com métodos que podem ser

ilustrados pela teoria freudiana. Há cinquenta anos um lapso numa conversa passava, mais ou

menos, despercebido. Podia considerar-se uma excepção que tal lapso abrisse perspectivas

profundas, numa conversa que parecia decorrer superficialmente. Desde "Psicopatologia da

Vida Quotidiana", esse facto alterou-se. Esta obra isolou e, simultaneamente, tornou

analisáveis coisas que, anteriormente, fluíam na ampla corrente do percepcionado. O cinema,

em toda amplitude da percepção óptica, e agora também acústica, teve como consequência um

aprofundamento semelhante da percepção. O reverso deste facto reside em que os

desempenhos num filme são analisáveis mais exactamente e sob mais pontos de vista do que

os desempenhos apresentados num quadro ou no palco. No que diz respeito à pintura, o que

permite uma melhor análise do desempenho apresentado num filme é a informação mais

exacta sobre as situações que o cinema faculta. Relativamente ao palco, a maior capacidade de

análise do desempenho apresentado no filme é condicionada pelo facto deste ser mais

facilmente isolável nos seus elementos constituintes. O significado principal desta

circunstância reside na tendência para promover a penetração mútua entre arte e ciência. De

facto, num comportamento cuidadosamente preparado, em determinada situação – como um

músculo num corpo – é quase impossível determinar em que reside o seu grande fascínio, se

no seu valor artístico, se na possibilidade de um aproveitamento científico. Uma das funções

revolucionárias do cinema será a de tornar reconhecíveis como idênticos os

aproveitamentos artístico e científico da fotografia, até agora divergentes, na maioria dos

casos24. Isto porque o cinema, através de grandes planos, do realce de pormenores escondidos

em aspectos que nos são familiares, da exploração de ambientes banais com uma direcção

genial objectiva, aumenta a compreensão das imposições que rege nossa existência e consegue

assegurar-nos um campo de acção imenso e insuspeitado. As nossas tabernas, as ruas das

grandes cidades, os nossos escritórios e quartos mobilados, as nossas estações ferroviárias e as

fábricas, pareciam aprisionar-nos irremediavelmente. Chegou o cinema e fez explodir este

mundo de prisões com a dinamite do décimo de segundo, de forma tal que agora viajamos

calma e aventurosamente por entre os seus destroços espalhados. Com o grande plano

aumenta-se o espaço, com o ralenti o movimento adquire novas dimensões. Uma ampliação

não tem por única função tornar mais claro o que "sem isso" teria permanecido confuso, o

mais importante sendo a revelação de estruturas de matéria inteiramente novas. Assim,

também o ralenti não revela apenas motivos conhecidos em movimento, antes descobrindo

nestes movimentos conhecidos outros, desconhecidos, "que longe de parecerem movimentos

rápidos retardados, actuam como peculiarmente deslizantes, aéreos e supraterrenos"25. Assim

se torna compreensível que a natureza da linguagem da câmara seja diferente da do olho

humano. Diferente, principalmente, porque em vez de um espaço preenchido conscientemente

pelo homem, surge um outro preenchido inconscientemente. Mesmo que seja comum

observar, ainda que grosseiramente, o andar das pessoas, nada se sabe da sua atitude na

fracção de segundo em que avançam um passo. Em geral, o acto de pegar num isqueiro ou

numa colher é-nos familiar, mas mal sabemos o que se passa entre a mão e o metal ao efectuar

esses gestos, para não falar de como neles actua a nossa flutuação de humor. Aqui, a câmara

intervém com os seus meios auxiliares, os seus "mergulhos" e subidas, as suas interrupções e

isolamentos, os seus alongamentos e acelerações, as suas ampliações e reduções. A câmara

leva-nos ao inconsciente óptico, tal como a psicanálise ao inconsciente das pulsões.

XIV

Foi, desde sempre, uma das mais importantes tarefas da arte criar uma procura para cuja

satisfação plena ainda não chegou a hora26. A história de qualquer forma de arte apresenta

épocas críticas, em que determinada forma aspira a obter efeitos que só mais tarde, perante um

novo padrão da técnica, podem ser facilmente obtidos, ou seja, numa nova forma de arte. As

extravagâncias e excessos da arte que se manifestam principalmente em períodos ditos de

decadência, surgem realmente das suas energias históricas mais ricas. Recentemente, tais

barbarismos abundavam no dadaísmo. O seu impulso só agora se toma reconhecível: o

dadaísmo tentava criar, através da pintura ou da literatura, os efeitos que hoje o público

procura no cinema.

Toda a criação pioneira de procura, fundamentalmente nova, ultrapassa o seu objectivo. O

dadaísmo faz isso ao sacrificar os valores de mercado, tão importantes para o cinema, em

favor de intenções mais significativas de que evidentemente não tinha consciência no contexto

que aqui descrevemos. Os dadaístas atribuíam muito menor valor à possibilidade de

aproveitamento mercantil das suas obras de arte do que à sua inutilidade enquanto objectos de

imersão contemplativa. O princípio da degradação dos materiais não foi de somenos

importância na sua tentativa de atingir aquela inutilidade. Os seus poemas são "uma salada de

palavras" que contêm obscenidades e os detritos verbais que é possível conceber. Não é

diferente o panorama das suas pinturas em que colam botões ou bilhetes de transportes. O que

conseguiram, com estes meios, foi uma destruição irreverente da aura das suas criações, as

quais, pelos meios da produção, imprimem o estigma de uma reprodução. Perante um quadro

de Arp ou de um poema de August Stramm é impossível ter a mesma atitude de recolhimento

ou de opinião que se tem perante um quadro de Derain ou um poema de Rilke. Ao

recolhimento, de que a degenerescência da burguesia fez uma escola de comportamento

associal, contrapõe-se a distracção como uma espécie de jogo de comportamento social27. As

manifestações dadaistas asseguravam de facto uma distracção intensa colocando a obra de arte

no centro de um escândalo. Essa acção tinha que satisfazer, pelo menos, uma exigência:

provocar o escândalo público.

De espectáculo atraente para o olhar ou sedutor para o ouvido, a obra de arte tornou-se,

no dadaismo, um choque. Afectava o espectador, adquiria uma qualidade táctil. Assim,

beneficiou a procura do cinema, cujo elemento de distracção, em primeiro lugar, também é

táctil uma vez que se baseia na mudança de lugares e acção, cuja intermitência choca o

espectador. Comparemos a tela em que se desenrola um filme com a que está subjacente a um

quadro. Esta última convida o observador à contemplação, perante ela pode entregar-se ao seu

próprio processo de associações. Diante do filme não pode fazê-lo, mal regista uma imagem

com o olhar e já ela se alterou. Não pode ser fixada. Duhamel, que detesta o cinema e nada

sabe do seu significado, mas percebe algo das suas estruturas, caracteriza esta circunstância da

seguinte forma: "Já não posso pensar o que quero pensar. As imagens em movimento

tomaram o lugar dos meus pensamentos."28 De facto, a sucessão de imagens perturba o

processo de associação daquele que as observa. Neste facto reside o efeito de choque do

cinema que, como qualquer efeito de choque, deve ser suportado por uma presença de espírito

acrescida29. Através da sua estrutura técnica, o filme libertou o efeito de choque físico do

invólucro moral em que o dadaísmo ainda o mantinha, de certo modo envolvido30.

XV

A massa é uma matriz da qual, actualmente, surgem novas formas relativamente aos

comportamentos habituais para com a obra de arte. A quantidade transformou-se em

qualidade: o número muito mais elevado de participantes provocou uma participação de

tipo diferente. Que esta participação tenha começado por ser manifestada de uma forma

depreciativa, não deverá confundir o observador. Claro que não faltaram os se agarraram a

este lado superficial das coisas e o denunciaram com paixão. Entre estes, o que se exprimiu

com maior radicalismo foi Duhamel. O que mais contesta no cinema é a forma de participação

que suscita nas massas. Duhamel chama ao cinema "um passatempo para a ralé, uma diversão

para criaturas iletradas, miseráveis, gastas pelo trabalho e consumidas pelas preocupações...

um espectáculo que não exige concentração nem pressupõe qualquer capacidade de

raciocínio.... que não ilumina nenhum coração e que de forma alguma desperta qualquer

esperança a não ser a esperança ridícula de vir um a ser estrela em Los Angeles.31" Como se

vê, no fundo, trata-se da velha queixa de que as massas procuram diversão mas que a arte

exige recolhimento por parte do observador. Trata-se de um lugar-comum. Permanece a

questão de saber se ele nos proporciona uma análise do cinema. Ou seja, uma visão mais

próxima. A diversão e o recolhimento formam um contraste que nos permite a seguinte

formulação: aquele que se recolhe perante a obra de arte, mergulha nela, entra nesta obra,

como esse lendário pintor chinês ao contemplar a sua obra acabada. Pelo contrário, as massas

em distracção absorvem em si a obra de arte. A construção de edifícios é disto o exemplo

mais elucidativo. A arquitectura sempre foi o protótipo de uma obra de arte, cuja recepção foi

distraída e colectiva. As leis da sua recepção são as mais instrutivas.

A construção de edifícios acompanha a humanidade desde os primórdios da sua história.

Muitas formas de arte surgiram e desapareceram. A tragédia surge com os Gregos, para se extinguir

com eles e, só séculos após, fazer reviver as suas "leis". A epopeia, cuja origem se

situa no alvorecer dos povos, expira na Europa com o fim da Renascença. A pintura de

quadros é uma criação da Idade Média, e nada garante a sua existência eterna. Mas a

necessidade humana de um abrigo é duradoura. A arquitectura nunca parou. A sua história é

mais antiga do que a de qualquer outra arte, e a sua capacidade de se actualizar é importante

para qualquer tentativa de compreensão da relação das massas com a obra de arte. A

construção de edifícios tem uma recepção de dois tipos: através do uso ou através da sua

percepção. Melhor dizendo: táctil e óptica. Não podemos compreender a especificidade dessa

recepção, se a entendermos segundo o tipo de recolhimento que, por exemplo, é habitual num

grupo de viajantes perante edifícios célebres. No aspecto táctil não há contraponto para aquilo

que a contemplação proporciona no domínio visual. A recepção táctil sucede não tanto através

da atenção, como através do hábito. Relativamente à arquitectura, é este último que determina,

em grande medida, a recepção visual. Também esta ocorre devido a uma observação natural

do que a um esforço de atenção. Mas em determinadas circunstâncias, esta recepção criada

pela arquitectura, tem um valor canónico. Porque: as tarefas que são apresentadas ao

aparelho de percepção humana em épocas de mudança histórica, não podem ser resolvidas

por meios apenas visuais, ou seja, da contemplação. Elas só são dominadas gradualmente,

pelo hábito, após a aproximação da recepção táctil.

Também quem se distrai pode criar hábitos. Mais: poder dominar certas tarefas na distracção,

só prova que a sua resolução se tornou um hábito. Através da distracção que a arte oferece,

podemos verificar de modo indirecto em que medida se terão tomado resolúveis novas tarefas

da percepção. Aliás, como para cada indivíduo existe a tentação de se furtar a tais tarefas, a

arte conseguirá resolver as de maior peso e importância se conseguir mobilizar as massas.

Concretiza-o no cinema actual. A recepção na diversão, cada vez mais perceptível em todos

os domínios da arte, e que é sintoma das mais profundas alterações na apercepção, tem no

cinema o seu verdadeiro instrumento de exercício. No seu efeito de choque, o cinema vai ao

encontro desta forma de recepção. O cinema rejeita o valor de culto, não só devido ao facto de

provocar no público uma atitude crítica, mas também pelo facto de tal atitude crítica não

englobar, no cinema, a atenção. O público é um examinador, mas distraído.

EPÍLOGO

A crescente proletarização do homem contemporâneo e a crescente formação de massas são

duas faces da mesma medalha. O fascismo tenta organizar as massas recentemente

proletarizadas, sem tocar nas relações de propriedade que estas pretendem eliminar. O

fascismo vê a sua salvação no facto de permitir às massas que se exprimam mas, de modo

nenhum, que exerçam os seus direitos32. 1 As massas têm direito a exigir uma alteração das

relações de propriedade; o fascismo pretende dar-lhes expressão, conservando essas relações.

Por conseguinte, o fascismo acaba por introduzir uma estetização na vida politica. À

violência sobre as massas a quem, através do culto de um "führer", o fascismo impõe a

subjugação, corresponde a violência que sofre um aparelho utilizado ao serviço da produção

de valores de culto.

Todos os esforços para introduzir uma estética na política culminam num ponto: a guerra.

A guerra, e só a guerra, torna possível fazer de movimentos de massas em grande escala

objectivo, mantendo as relações de propriedade tradicionais. Do ponto de vista político, assim

se formula a situação. Do ponto de vista da técnica, formula-se da seguinte forma: só a guerra

possibilita a mobilização dos actuais meios técnicos mantendo as relações de propriedade. É

evidente que a apoteose fascista da guerra não utiliza este argumento. Apesar disso, vale a

pena debruçarmo-nos sobre ele. No manifesto Marinetti, sobre a guerra colonial etíope, diz-se:

"Há vinte e sete anos que nós, futuristas, nos manifestamos contra o facto de se designar a

guerra com anti estética... por conseguinte declaramos:... a guerra é bela porque fundamenta o

domínio homem sobre a maquinaria subjugada, graças às máscaras de gás, aos megafones

assustadores, aos lança-chamas e tanques. A guerra é bela porque inaugura a sonhada

metalização do corpo humano. A guerra é bela porque enriquece um prado florescente com as

orquídeas de fogo das metralhadoras. A guerra é bela porque reúne numa sinfonia o fogo das

espingardas, dos canhões, dos cessar-fogo, os perfumes e os odores de putrefacção. A guerra é

bela porque cria novas arquitecturas, como a dos grandes tanques, a da geometria de aviões

em formação, a das espirais de fumo de aldeias a arder e muitas outras... poetas e artistas do

futurismo... lembrai-vos destes fundamentos de uma estética da guerra, para que a vossa luta

possa iluminar uma nova poesia e uma nova escultura!33"

Este manifesto tem a vantagem de ser claro. A sua forma de colocar as questões, merece ser

retomada pelo dialéctico. A estética da guerra actual apresenta-se-lhe da seguinte forma: se o

aproveitamento natural das forças produtivas for travado pelo sistema de propriedade, então o

aumento de recursos técnicos, de ritmo, de fontes de energia, será impelido a uma valorização

não natural. É o que sucede na guerra que, com as suas destruições, demonstra que a

sociedade não tinha maturidade suficiente para incorporar a técnica como órgão seu, e de que

a técnica não estava suficientemente desenvolvida para dominar as suas forças sociais

elementares. A guerra imperialista é determinada, nos seus mais terríveis aspectos, pela

discrepância entre os poderosos meios de produção e o seu aproveitamento inadequado no

processo produtivo (por outras palavras, pelo desemprego e escassez de mercados). A guerra

imperialista é uma revolta da técnica que reclama sob a forma de "material humano" aquilo

que a sociedade lhe retirou como material natural. Em vez de canalizar rios, conduz a corrente

humana ao leito das suas trincheiras, em vez de lançar sementes dos seus aviões, lança

bombas incendiárias sobre cidades e, como a guerra do gás, encontrou um meio de aniquilar a

aura, de uma nova forma.

"Fiat ars – pereat mundus"34, diz o fascismo e, como Marinetti reconhece, espera que a guerra

forneça a satisfação artística da percepção dos sentidos alterados pela técnica. Isto é,

evidentemente, a consumação da "l'art pour l'art”. A humanidade que, outrora, com Homero,

era um objecto de contemplação para os deuses no Olimpo, é agora objecto de auto

contemplação. A sua auto-alienação atingiu um grau tal que lhe permite assistir à sua própria

destruição, como a um prazer estético de primeiro plano. É isto o que se passa com a estética

da política, praticada pelo fascismo. O comunismo responde-lhe com a politização da arte.

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